Psicanálise e Amor: uma transmissão.

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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

quinta-feira, 5 de junho de 2014

" Ponham algo de si na psicanálise, não se identifiquem comigo...Tenham seu estilo próprio, pois eu tenho o meu..." Jacques Lacan.

O Estilo, o Analista e a Escola
Antonio Quinet


     O termo estilo se origina do grego stylus: um instrumento pontudo de metal, punção que serve para furar ou gravar. Esse aspecto presente em sua etimologia nos indica sua característica de marca, corte, furo, e nos servirá para situar o estilo do analista.

     A estilística, que pretende ser uma ciência dos registros das línguas, desenvolveu-se sob a égide da lingüística. Ela se esforça para definir o estilo como conceito operatório e dele nos fornece ao menos dois significados: i) o estilo como instrumento de generalização; o estilo designa aqui um sistema de meios e regras prescritos ou inventados, e utilizados na produção de uma obra, por exemplo, o estilo barroco, o estilo colonial, o estilo art nouveau etc.; ii) o estilo como instrumento de singularização, definindo uma propriedade ou qualidade de alguém, em geral um artista de quem se pode dizer "ele tem um estilo".

     Na estilística, há os que têm o estilo e os que não o têm. Se nesta o estilo é considerado uma virtude singular e um índice de reconhecimento, na psicanálise a proposta é outra: a psicanálise admite a vertente do estilo como instrumento de singularização, porém dele não faz um instrumento de segregação entre talentosos e não talentosos.

     Dito de outro modo, o estilo na estilística é diferenciado segundo o acordo ou desacordo com um sistema de regras e valores: o acento é posto na anterioridade do sistema. Quando um sujeito se adapta e segue o sistema organizado que constitui um determinado estilo, ele se encaixa na generalização deste estilo. Em relação à singularidade, pode haver uma antecipação de um estilo, como é o caso de alguém que rompe com o sistema de regras e meios de expressão de um determinado estilo a partir de seu estilo próprio, inventando um novo estilo que outros seguirão. Neste sentido, o que se chama de singularização é a ênfase na transgressão do sistema, ou seja, em sua ruptura e a conseqüente inovação. Em outras palavras, o estilo é pessoal e transgride o sistema de normas do estilo generalizado.

     Esse aspecto nos permite evocar a contribuição de Marie-Jean Sauret, (Sauret, 1996) que define o Analista da Escola - aquele que demonstrou no dispositivo do passe ter efetuado a passagem de analisante a analista - como uma objeção ao saber ao saber do Outro (o Outro da teoria o Outro da psicanálise, o Outra da instituição), ou seja, como singularidade que rompe com o saber universal. Um analista que se constitui como objeção ao saber é aquele que põe algo de si na elaboração do saber psicanalítico, contribuindo com seu estilo próprio para uma inovação de saber. "No poeta, quebra-se o elo da transmissão: o indivíduo, por instantes, opõe-se à sociedade - consciente ou inconscientemente - e, com os mesmos processos da língua-social - também consciente ou inconscientemente - cria seus valores individuais, sua língua-indivíduo: estilo" (Houaiss, 1948). Contra a opinião corrente, Lacan propôs que essa "língua-indivíduo" é precisamente, como o estilo na poesia, o que se transmite em psicanálise.

Buffon e Lacan

     "O estilo é o próprio homem", diz Buffon. O estilo é o homem a quem me endereço, corrige Lacan. (Lacan, 1998 [1966]: 9).Melhor dizendo, o estilo é o Outro: o Outro a quem eu me endereço como lugar é o mesmo Outro de que recebo minha própria mensagem de forma invertida. Que Outro é esse senão o Outro do pacto da palavra, o Outro da fala que também é o Outro do comando?

     Podemos desdobrar a afirmação de que o estilo é o Outro em pelo menos duas acepções: na primeira, pode-se considerar que o Outro social, por exemplo, o Outro da comunidade dos analistas comanda meu estilo, o que corresponde ao estilo generalizável não muito longe da moda; na segunda, que se trata do Outro do Inconsciente, pois o Inconsciente é o discurso do grande Outro. O estilo é efetivamente tributário das leis do inconsciente: "não há forma de estilo, por mais elaborado que seja, em que o inconsciente não abunde" (Lacan, 1998[1966]:469).

     Assim, o primeiro passo para corrigir Buffon é colocar o Outro lá onde ele coloca o próprio homem. Buffon situa o estilo tributário do pequeno outro e Lacan inicialmente o situa articulado ao grande Outro do Inconsciente. No esquema L (Lacan, 1987[1954-5]: 284), a mensagem que o sujeito envia ao outro, ao pequeno outro, é na verdade uma mensagem que lhe vem do inconsciente como discurso do Outro. Mas como situar o estilo como estilo do Outro quando nós sabemos que o Outro não existe?

     Quando o sujeito chega no final de análise, ele se depara com o ponto de inconsistência do Outro, lá onde o Outro não responde, deixando o sujeito sem recurso, pois sabe que do Outro não virá qualquer salvação. O Outro não responde porque não existe e o sujeito se vê diante da solidão originária, do desamparo. Nesse ponto de inconsistência do Outro, em que o sentido se perde, e o apelo se esgota, o sintoma perde também o seu endereçamento ao Outro e aí se reduz a um toco de real.

     Por outro lado, o Outro - o Outro da demanda e o Outro do comando com sua exigência superegóica - se desvanece. O final de análise coloca em questão a identificação do estilo do sujeito com o estilo do Outro, ou seja, ele suspeita se o estilo provém mesmo do Outro. Podemos inferir que é esta a razão de Lacan concluir no texto de Abertura dos Escritos que não é o Outro e sim o objeto a o que responde pela questão do estilo: "É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber" (Lacan, 1998, [1966]:11)

     O estilo não é o próprio homem. O estilo não é o Outro. O estilo é o objeto a, causa de desejo. Se é possível remeter o estilo ao Outro da linguagem, isto se deve à articulação entre o gozo e o significante, como veremos adiante. Em psicanálise, a questão do estilo se articula tanto com a verdade quanto com o saber.

     Se o estilo que advém numa análise é o estilo relativo ao Outro, na condição de barrado, então o matema que corresponde a esse estilo é correlativo ao matema S(A): há uma falta no Outro. Ora, o ponto de falta no Outro é o correlato topológico do objeto a, causa de desejo, que o sujeito encontra no final da análise a partir da travessia da fantasia, uma vez que era esta que sustentava a suposição da existência do Outro.

     A travessia da fantasia é a condição para que haja esse encontro com a inconsistência do Outro, todavia este não é absolutamente necessário. Ele pode ocorrer ou não, e quando ocorre é sempre ocasional, contingente, por acaso. É por acaso que o sujeito tropeça, se depara com a falta do Outro e experimenta esse sem recurso do apelo ao Outro.

     Se o estilo advém do sem recurso, como se dá em uma análise esse processo em que advém o estilo? E qual sua relação com o sintoma?

     A identificação com o sintoma no final de análise (Lacan, 1976) não nos diz nada da operação analítica, pois não é com seu sintoma que o analista opera. Uma teoria do estilo merece ser elaborada para que se articulem final de análise, ato analítico e transmissão da psicanálise.

Bem dizer o sintoma

     Antes da análise, o sintoma é um dizer que ainda não encontrou seu dito. A passagem para o sintoma bem-dito é o que constitui o termo do processo analítico que se alinha na ética do bem dizer. Neste sentido, a ética da psicanálise é a ética de bem dizer o sintoma.

     Na entrada em análise, para que o sintoma do sujeito se transforme em um sintoma analítico é preciso que ele seja considerado pelo sujeito como um parceiro de verdade, nos dois sentidos da expressão. O sujeito precisa não só dar crédito ao sintoma (y croire), como também acreditar nele (le croire) (Lacan 1974-75: 110). Ele precisa considerar que o sintoma seja verdadeiro e não falso e, por outro lado, considerá-lo em uma parceria com a verdade, isto é, é preciso que ele considere que o sintoma detém algo de sua verdade, que o sintoma subjetiva sua verdade. Portanto, para que uma análise se inicie, é necessário que o sujeito considere seu sintoma estruturado como a verdade, isto é, como um enigma em que algo está velado e que ao mesmo tempo desvela algo da verdade.

     O sintoma como verdade é "alethos": ele vela e desvela algo que o sujeito considera como uma mensagem endereçada a ele e fazendo parte de sua verdade. Por fazer parte da estrutura da verdade, o sintoma não pode ser dito por inteiro, ou seja, o sintoma é um semi-dizer porque participa do enigma da verdade. Um sintoma, mesmo quando é decifrado, contém algo que continua velado ao sujeito. Isso muitas vezes é uma frustração que ocorre na análise, pois o sujeito que esperava uma grande revelação de sua verdade, ao decifrar seus sintomas, verifica que a verdade sobre seu ser não é totalmente desvelada.

     A operação da psicanálise vai portanto do semi-dizer da verdade do sintoma ao bem dizer o sintoma. O que não quer dizer que o sintoma desapareça, pois, como indicamos, ele não se diz por inteiro. Se o sintoma no início da análise é um semi-dizer que ainda não encontrou seu dito, no final da análise o sujeito chega a um bem dizer o sintoma apesar de não fazê-lo totalmente. O sintoma fica reduzido, por assim dizer, a um real bem dito.

     O que é um sintoma como um real bem dito? Não seria um paradoxo falarmos de um real dito, se o real se caracteriza pelo impossível?

     O bem dizer do sintoma é um dizer de verdade que toca o real, um dizer sobre o núcleo do real do sintoma, que é irredutível. Eis a dimensão ética (e inédita) do sintoma em psicanálise. Diferentemente da medicina, em que se tenta abolir o sintoma, a psicanálise considera o sintoma como um signo do sujeito. Por outro lado, bem dizer o sintoma equivoca com abençoar o seu sintoma, apontando para a conciliação com este. Todavia trata-se de uma conciliação diferente do compromisso neurótico de recalcar a verdade da castração do sujeito. Segundo Lacan, recalcamos a verdade, e nos habituamos ao real.

     A conciliação com o sintoma no final da análise implica, por um lado, não recalcar a verdade do sintoma, mas sim bem dizê-la, e, por outro, habituar-se com seu real, reduzido a um caroço ou núcleo irredutível. Mas qual é o efeito dessa redução? Este é um efeito sobre o mal-estar que o sintoma provocava. Neste sentido, bem dizer o sintoma é a condição para aquilo que Lacan propôs referindo-se à relação do sujeito com seu sintoma no final de análise: savoir y faire, saber lidar com o sintoma (Lacan, 1976). Em resumo, o bem dizer do sintoma a que leva uma análise conduzida até seu final é a condição de saber lidar com ele, ponto a partir do qual podemos introduzir a questão do estilo.

As vias do gozo

     A passagem do semi-dizer do sintoma ao bem dizer o sintoma que constitui o próprio processo analítico implica num efeito na enunciação do sujeito, muitas vezes constatado pelos mais próximos ao comentarem algo como: "Há algo que mudou em você, eu não sei direito o que é... isso deve ser efeito da análise". Amigos, parentes, colegas notam uma mudança verdadeira na maneira, no jeito de ser, de viver, de falar e de escrever da pessoa. Trata-se de um efeito sobre o estilo que a psicanálise deve considerar e tentar justificar, pois trata-se de um efeito na enunciação que corresponde a uma mudança operada na economia do gozo.

     Essa mudança incide na relação entre significante e gozo, que é uma relação de causalidade: "o significante é a causa do gozo" (Lacan, 1982 [1972-3]: 36). O que isso quer dizer?

     Lacan desdobrou essa causalidade a partir das quatro causas de Aristóteles descritas no livro II da Física. O exemplo utilizado por Aristóteles para abordar as quatro causas é o do artista escultor que faz de um bloco de mármore uma estátua. A causa material é aquilo de que a coisa é feita, ou seja, é a própria matéria, no caso, o bloco de mármore. A causa eficiente é o agente, ou seja, o escultor que utiliza seus músculos e o instrumento, a espátula, por exemplo, para fazer a estátua. Em outras palavras, o agente que atua sobre a matéria com seus próprios movimentos e a transforma em um objeto estético. A causa formal é a idéia, o modelo que o escultor tem da estátua, "a idéia que está na alma do artesão", diz Aristóteles. A causa formal não está no corpo como a causa eficiente, porém na idéia do agente. Por último, a causa final é aquilo em vistas do que toda a operação é realizada. A causa final é chegar-se a um efeito de belo, ou seja, é para atingir o Belo que a estátua foi feita.

     Segundo Lacan, para os seres falantes. a essência aristotélica (ousia, a substância) é da ordem do gozo. Desdobrando o axioma "o significante é a causa do gozo" de acordo com as quatro causas de Aristóteles, teremos: como causa material, o significante é o material para se chegar ao gozo, para abordá-lo. Sem o significante não há gozo do corpo. O corpo gozante tem como material o significante. Como causa eficiente, o significante é o projeto com o qual se limita o gozo. É o caminho que o gozo efetua, comparado por Lacan com o trajeto da abelha que transporta o pólen da flor-macho para a flor-fêmea. Isso indica que o significante é o escultor das vias de gozo, é ele que traça as ruas, os canais por meio dos quais o corpo goza. Como causa formal, ele é o estreitamento, o aperto ao qual o gozo é submetido. É o "modelo" do gozo que Lacan encontra na gramática. O significante estreita, aperta o gozo na gramática. A causa formal promovida pelo significante produz uma gramática do gozo cuja melhor ilustração encontramos no verbo. A gramatização do gozo como causa formal não deixa de evocar a gramática pulsional promovida por Freud em sua metapsicologia. E como causa final, o significante é o freio do gozo, um "alto lá" ao gozo. A causa final do gozo não é o Belo nem qualquer outro ideal, pois o significante como causa final é a barreira ao gozo, um limite interno a ele. Segundo Lacan, ela se encontra na "origem do vocativo do comando", o comando do supereu - "goza!" - desvelando a estrutura do significante provocando o gozo.

     Como causa de gozo, o significante nos mostra que a linguagem traça as vias do gozo; ela promove seus caminhos, ruas e avenidas, seus compartimentos e comportas favorecendo umas, dificultando outras ou impossibilitando ainda outras. O significante fabrica os circuitos de gozo para o sujeito. Nesses circuitos, situam-se tanto o sintoma como a fala própria ao sujeito, pois ambos são tecidos de linguagem e de gozo.

     Ora, é nisso que a análise opera: nas vias de gozo do significante, nessas vias da economia libidinal promovidas pelos significantes. Se há limites intransponíveis, pois nem todos os compartimentos podem ser abertos, outros são transpostos ao serem desatados alguns nós de significação do sintoma. E como o sintoma é do mesmo tecido da linguagem, ao se desfazerem os nós de gozo do sintoma, algumas comportas se abrem para o dizer, para o bem dizer. A modificação das vias significantes de gozo é correlata à passagem do semi-dizer do sintoma a seu bem dizer, que se acompanha necessariamente de uma mudança na enunciação, ou seja, no jeito de lidar com a linguagem, incidindo sobre o estilo do sujeito.

O estilo não é o sintoma

     O estilo é a via da manifestação da verdade; o sintoma é outra, só que em momentos diferentes. Na análise, o sintoma como verdade participa de um processo que comporta dois destinos. No final, o sujeito não acredita no seu sintoma e não lhe dá mais crédito, pois ele foi reduzido a um real irredutível e o sujeito considera que não tem mais nada de verdade em seu sintoma. A verdade não é mais função do sintoma. Terá ela desaparecido? Não. Ela se encontra na via do estilo em que a verdade toca o real através do bem dizer.

     A enunciação é o modo de dizer de cada um, o modo de manejar os enunciados e as proposições, aquilo que vem a mais no enunciado por onde circula o mais-de-gozar, esse suplemento do enunciado. A verdade como tal, por sua estrutura de semi-dizer, que não se encontra toda no dito, participa da enunciação. Como afirma Lacan, "o verdadeiro só depende de minha enunciação" (Lacan, 1992[1969-70]:68). Ele não está na preposição. O semi-dizer da verdade do sintoma passa, em uma análise, para a enunciação de enunciados aos quais o sujeito chega sobre o próprio sintoma, enunciados verdadeiros que constituem o bem dizer próprio à ética da psicanálise. No sintoma, não encontramos propriamente la verité mas la varité, não a verdade mas a "varidade" (Lacan, 1976), equívoco que Lacan faz entre verdade e variedade, indicando-nos a passagem do sintoma-verdade à variedade do sintoma de cada um, à singularidade do seu sintoma.

     Em suma, o sintoma-verdade comporta dois destinos: o estilo, que é da ordem da enunciação por onde circula a verdade, e o sintoma como real. A verdade se desvincula do sintoma para estar a serviço do estilo.

     Um ensino digno de Freud "só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos transmitir àqueles que nos seguem, ela se chama: um estilo" (Lacan, 1998[1966]:460). Transmissão de verdade que provém do real.

     A distinção entre o sintoma e o estilo é fundamental para abordarmos a transmissão da psicanálise e a maneira pela qual o analista opera. Se todo analista passou por uma análise, cada um certamente tem um sintoma, pois o sintoma não termina para ninguém1. Mas será que o analista opera com o seu sintoma? Não. O analista não opera com seu sintoma, ele opera a partir de seu estilo, que é o estilo de cada um, através do qual ele sustenta aquilo que Lacan denomina "desejo do analista", o operador lógico de todo processo analítico. Para o analista, saber lidar com o seu sintoma para conduzir uma análise corresponde a fazer calar o sintoma e operar com o desejo do analista, o que inclusive é de grande importância para se pensar a transmissão da psicanálise, pois não se transmite o sintoma; podemos identificarmo-nos ao sintoma, mas não transmiti-lo.

     A transmissão pela via do estilo pode ser pensada a partir dessa frase paradoxal de Lacan: "Façam como eu, não me imitem". Podemos interpretá-la da seguinte forma: "Façam como eu, saibam lidar com seu sintoma, e inventem um estilo que lhes seja próprio". E mais: "Ponham algo de si na Psicanálise, não se identifiquem comigo". Poderíamos formular que o "não me imitem" está do lado do sintoma, e o "façam como eu", do lado do estilo, podendo então ser traduzido por: "Tenham [cada um] seu estilo próprio, pois eu tenho o meu".

     Transmitir um estilo parece ser um paradoxo. Não se trata de herança paterna, como se dá na tranmissão da castração de pai para filho. Nem de passar o bastão ou a tocha ardente, como nas Olimpíadas. O que se transmite no estilo é algo da enunciação de cada um, por onde circula, no caso da análise, o "x" do desejo do analista. Ora, um estilo, por não ser um traço significante, não se presta à identificação. Quando se vê uma pessoa tentando imitar o estilo de outra, surgem as coisas mais ridículas. Aparece um macaquear, um traço de inautenticidade bizarra revelando uma tentativa fracassada de identificação.2

     O estilo, presente na enunciação, no modo de falar, escrever e mesmo viver, é o que Lacan propõe quando ele situa no preâmbulo à "Ata de fundação da Escola" que a Escola pode ser o lugar de discutir "o estilo de vida ao qual uma análise leva", pois o estilo é a forma, o jeito, a maneira, que cada uma escolhe viver, sabendo lidar com seu sintoma. O estilo pode portanto ser considerado como a maneira que o sujeito lida com o seu sintoma, essa maneira passando pelo bem dizer.

O estilo e o discurso do analista

     Na teoria lacaniana dos discursos, o estilo aparece definido como a "forma de imposição de um discurso" (Lacan, 1992 [1969-70]:39). A forma aí tem todo o seu peso: é a maneira pela qual um discurso se impõe como um laço social. Se tomamos o estilo como algo da ordem da enunciação, podemos verificar como se dá a enunciação em cada discurso. O discurso como laço social é o âmbito em que se inscrevem nossa conduta e nossos atos, sendo constituído por certos enunciados primordiais. Os enunciados podem ser desvelados a partir daquilo que se encontra no lugar do agente de cada discurso: no discurso do mestre é a lei; no discurso da histérica, o sintoma; no discurso do universitário, o saber; no discurso do analista, o rechaço do discurso. Cada discurso vai se impor com um estilo que lhe é próprio: o que confere o estilo de cada discurso está vinculado ao que se encontra no lugar da verdade que habita a enunciação.

     No discurso do analista, encontramos o saber no lugar da verdade, indicando-nos que o estilo do analista é um estilo marcado pelo saber. O estilo do analista presente no ato analítico é suportado pelo saber lidar com o sintoma, expressão utilizada por Lacan pra definir o final de análise (Lacan1976), saber lidar com a castração. Esse saber lidar (savoir y faire) se articula com o saber inconsciente: tanto o saber sobre seu inconsciente quanto o saber sobre o inconsciente do analisante. Trata-se de um estilo vinculado ao desejo do analista que, segundo Lacan, não é um desejo puro, mas sim o desejo de se obter a pura diferença absoluta (Lacan, 1979 [1964]: 260), que corresponde ao S1, produto de uma análise. Podemos acrescentar que o desejo do analista é um desejo impuro porque ele é vinculado ao saber, ou seja, ele não é um puro desejo sexual, mas sim desejo de saber. Dito de outro modo, o desejo do analista, que corresponde à sua enunciação, é o desejo veiculado por seu estilo: desejo imiscuído de uma episteme, a episteme analítica, que pode ser resumida como saber que não há relação sexual que possa ser escrita na estrutura.

     Neste sentido, o estilo é a grife, a marca que o analista faz incidir em seu ato e em sua interpretação; a maneira pela qual toma corpo o x do desejo do analista. Trata-se da modulação particular através da qual ele envia não a sua própria mensagem ao Outro, porém ao sujeito analisante envia a própria mensagem deste, de forma interpretativa. Mensagem equívoca que longe de pontificar, divide.

     Somente no discurso do analista o estilo é desvelado como propriamente tributário do objeto a (no lugar do agente do discurso), pois é aqui que o estilo vinculado ao laço social é agenciado por aquilo que é o mais particular do sujeito. No matema do discurso do analista aparece a depuração máxima do estilo, pois ele aparece como pura enunciação, sem sentido, e até sem significante, no rechaço do discurso (a) que tentamos apreender com o jeito, a maneira.

Lacan e seu estilo

     Na concepção do estilo de Lacan há uma virada do estilo vinculado ao Outro do inconsciente para o estilo vinculado ao objeto a e, podemos dizer, ao S(A). Ele se refere a seu próprio estilo em dois momentos diferentes. O primeiro em 1956: "não há forma de estilo, por mais elaborado que seja, em que o inconsciente não abunde, sem excetuar as erudiditas, as concettistas e as preciosas, que ele [Quintiliano] despreza tão pouco quanto o faz o autor destas linhas, o Góngora da Psicanálise, segundo se diz, para servi-los" (1998[1956b]:469). Vemos aqui como Lacan aproxima seu estilo de escrever ao de Góngora, situando-se como um autor em relação ao estilo de um outro autor. O "para servi-los" indica o endereçamento ao leitor e que o estilo faz laço entre o autor e o leitor. Já em 1973 ele qualifica o seu estilo aproximando-o do estilo barroco. Ele não diz que seu estilo é o barroco, mas sim que "eu me alinho, de preferência, para o lado do barroco"3. O "de preferência" e o "para o lado" introduzem uma certa nuança em relação ao estilo em sua vertente generalizada. O que interessa do estilo barroco a Lacan são as esculturas sacras, engendradas pelo cristianismo: "tudo é a exibição de corpos evocando o gozo" (Lacan, 1982[1972-3]:102). Para Lacan, nesses anos 1970, após retornar de uma viagem à Itália em que visitara inúmeras igrejas barrocas e encontrara a estátua de Santa Tereza de Bernini, que lhe servirá de ilustração do gozo feminino, o que interessa é menos a linguagem, como nos anos 1950, do que o gozo implicado no estilo barroco. Há um mais-de-gozar do estilo que é desvelado pelo barroco, ou seja, o estilo é uma forma de manifestação do mais-de-gozar.

     Como dissemos, Lacan situa o objeto a lá onde Bufon situa o homem. O final deste pequeno texto de abertura aos Escritos termina dizendo: "queremos com o percurso de que esses textos são o marco e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar à uma conseqüência em que ele, o leitor, precise colocar algo de si". O estilo que seu endereçamento impõe mostra que este tem sempre um endereçamento, que, todavia, não é um endereçamento ao grande Outro. Tributário do objeto a, o estilo não deixa de constituir laço social, pois tem um endereçamento. Não existe um estilo autista, por exemplo, que seja um endereçamento para si. Nesse trecho, Lacan se endereça ao leitor com o seu estilo, o que pode ser escrito assim: estilo ---> leitor. Sendo o estilo correlato ao objeto a e o leitor um sujeito dividido que deve colocar algo de si, podemos formalizar a via do estilo na transmissão escrevendo: a --> $ (parte superior do discurso do analista).

A transmissão do estilo

     O estilo como a "única formação que podemos transmitir àqueles que nos seguem" nos faz definir a transmissão em psicanálise como endereçamento do estilo do analista. Cada ato do analista traz a marca ou o estilo do que Lacan considera o protótipo do ato analítico, ou seja, o ato da passagem de analisante a analista, realizado no interior de uma análise. Se isso é verdadeiro, o passe é o dispositivo em que se pode efetivamente verificar o estilo daquele analista, pois é ele que poderá acolher, recolher e até mesmo fazer a seriação da variedade dos finais de análise dos analistas, assim como o que de sua enunciação chega até o júri do passe.      No preâmbulo da "Ata de fundação da Escola freudiana de Paris" (Lacan 1964), Lacan diz que o termo Escola "deve ser tomado no sentido em que, nos tempos antigos, queria dizer certos lugares de refúgio e até mesmo bases de operação contra o que já se podia chamar de mal-estar na civilização. Para nos atermos ao mal-estar na psicanálise, a Escola entende oferecer seu campo não apenas a um trabalho de crítica, mas à abertura do fundamento da experiência, à colocação em causa [discussão, debate] do estilo de vida no qual ela desemboca". A própria definição de Escola de Lacan implica a avaliação do estilo de vida a que uma psicanálise leva. O estilo de vida aqui se distingue radicalmente das normas e dos modelos: não é possível se normatizar, nem se prever o estilo que o sujeito adotará ao término de uma análise.      Por mais duvidosos que sejam os resultados de uma análise, eles se encontram "para além das flutuações de moda e das premissas cegas a que se fiam tantas terapias", continua Lacan nesse texto. É importante salientar aqui essa diferença que apreendemos entre o estilo e a moda. Apesar de quem faz moda se chamar estilista, há toda uma diferença entre o que é da ordem do estilo em sua singularidade e a moda que tenta ditar um estilo generalizável4.      Lacan situa os resultados da psicanálise em oposição às flutuações da moda. Podemos, entretanto, nos perguntar se também não existe moda na psicanálise, uma moda que acaba se opondo ao estilo singular como resultado de uma psicanálise. A Associação Mundial de Psicanálise é mestre em lançar a moda de temas, termos e frases que todos saem repetindo. Antes era o "um por um", agora a "Escola Una". O desconhecimento e o descaso da questão do estilo chegaria às raias do ridículo se não fosse grave e seu testemunho pode ser lido, por exemplo, no Correio da Escola Brasileira de Psicanálise de junho de 1998 em que seu presidente escreve: "O analista não deve ser um escravo do estilo [...]. Redizer que o estilo é o homem a quem nos endereçamos é equiparar o analista ao homem pronto a todas as circunstâncias [...]. O analista pronto a todas as circunstâncias destacará em cada tempo: presente, passado e futuro a permanência da causa. Sustentará um estilo marcado pelo seu endereçamento. É o que propicia a conversação como um método pedagógico da causa psicanalítica". Esta pérola do desvio da psicanálise, resvalando explicitamente para a pedagogia, indica o que está implícito no método da conversação: fazer os analistas entrarem no discurso universitário, educando a causa analítica para melhor atenuá-la. Se o objetivo explicito de conversação é a pedagogia da causa analítica, ela se revelou na prática um processo stalinista de expurgo dos contestadores5. É o método de uma nova "psicanálise de massa" que mal escamoteia a psicologia das massas descrita por Freud antecipando o nazismo e o fascismo. Por outro lado, um estilo "marcado pelo endereçamento" é o oposto de um endereçamento marcado pelo estilo. Um estilo marcado pelo seu endereçamento é um estilo que é sempre do Outro, modulado e determinado pelo Outro. Se há algo que não pode ser uniformizado e que não pode ser marcado pelo endereçamento é justamente o estilo da singularidade que é o estilo do analista. O estilo de cada analista não pode ser marcado pelo Outro a quem ele endereça sua mensagem.      Uma Escola que determine um estilo a seus membros, uma Escola que imponha um estilo é aquela que funcionará como Outro. Consequentemente, as pessoas terão seu estilo marcado a partir desse endereçamento, o que vai contra o discurso do analista, pois o estilo é tributário do objeto a, causa de desejo. O estilo do analista, como já tínhamos acentuado, é vinculado a essa singularidade do objeto a e à incompletude do Outro [S(A)]; não há portanto o Outro completo, garante para o qual se possa endereçar seu ato, o que não quer dizer que o estilo não esteja no laço social.      A transferência de trabalho, como Lacan desenvolve na "Ata de fundação", é a transferência que se dá de um sujeito a um outro sujeito. Quando se endereça uma mensagem, uma fala, não se pode cair na ilusão que se está falando para o Outro, o coletivo. Na verdade, a transmissão da psicanálise, através da transferência de trabalho, ocorre de um para cada um individualmente, na transferência de trabalho com quem transmite. Em outras palavras, o conceito de transferência de trabalho indica que não se transmite para o público, como Outro do coletivo, pois ela é um conceito que aponta para S (A): a inexistência do Outro. O estilo do analista na transmissão de seu ensino é um estilo sem Outro.      Em uma psicanálise, o analista não se dirige ao Outro mas ao sujeito, e o seu estilo em seu ato é da ordem do "eu não penso". É um estilo separado da cadeia do pensamento inconsciente, ao sabor da contingência, ou seja, que não se prepara nem se planeja. Nessa acepção, estilo de contingência significa que de repente a transmissão cessa de não se escrever e o estilo se transmite, produz encontro. O estilo do analista faz aparecer que a verdade provém do real (Lacan, 1993[1974]:11). Como um estilete, stylus, ele fura, penetra, corta; ele rompe com a repetição da cadeia significante e, no ato, aparece como um puro dizer. Vinculado portanto ao desejo do analista e a seu ato, o estilo do analista é um estilo de passe, momento do ato analítico produzido como resposta do sujeito ao encontro com o real no final de análise: estilo que provoca a passagem e a partir do qual não é impossível que desta algo se transmita. Eis o desafio do dispositivo do passe inventado por Lacan: verificar que é possível depreender um estilo que implique uma passagem, a passagem a analista, ou seja, o passe. E seus atos trarão essa marca. É um etilo pas sans acte, passe en acte. (Nguyen, 1998).      A emergência de um estilo para cada analista se dá no momento do passe. O estilo é, portanto, inventado, criado na passagem de analisante a analista. Por consegüinte, ele não se apoia na fantasia, tampouco no sintoma. Ele é o resultado da travessia da fantasia para ser um estilo novo, ex-nihilo, correlato ao desejo novo como desejo do analista, desejo epistêmico, desejo de saber. Eis a operação da transmissão pela via do estilo: transmissão de passe causando passe.


NOTAS

1. "O analista também se identifica com seu sintoma", diz Lacan na "Abertura da Seção Clínica".
2. Há pouco tempo, em um restaurante, ouvi um cantor em Curitiba que tinha em seu repertório desde blues, jazz, até música sertaneja, passando por bossa nova, rock e chorinho; a cada vez que ele cantava uma música parecia que era outro cantor que a estava cantando. Podíamos até reconhecer o cantor que ele estava imitando, ou seja, aquele com cujo estilo ele estava se identificando. Diante deste fato, Jorge Sezarino propôs uma comparação, uma diferença entre o intérprete e o cantor. O intérprete é aquele que tenta imitar o estilo de um cantor conhecido e o cantor é o que canta cada música à sua maneira com o estilo que lhe é próprio.
3. Em francês: "Je me range plutôt du côté du barroque".
4. Também existe a moda no âmbito "psi": a moda da síndrome do pânico, a moda da depressão e a última moda do TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), cujo tratamento medicamentoso foi a grande estrela do Congresso Brasileiro de Psiquiatria em São Paulo de 1998, junto com a prevenção da depressão.
5. Cf. Os desenvolvimentos que apresento em meu texto "Pacto, que pacto" sobre os processos stalinistas em que as Conversações da AMP se transformaram (Quinet, 1998d).


BIBLIOGRAFIA

HOUAISS, Antonio,
"Poesia e estilo de Carlos Drumond de Andrade", Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, Serviço de documentos, 1948.
LACAN, Jacques. (1954-5) O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1987.
LACAN, Jacques. (1964a) "Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris", Opção Lacaniana, n. 17, 1996.
LACAN, Jacques. (1964), O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1979.
LACAN, Jacques. (1966) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, Jacques. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, Jacques. (1972-3) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982.
LACAN, Jacques. (1974) Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
LACAN, Jacques. (1974-75) "Le Séminaire, RSI", (21 de Janeiro de 1975), Ornicar ? n.3, Paris, 1975.
LACAN, Jacques. (1976) "Ouverture de la Section clinique", Ornicar? N. 9, Paris, 1977, p. 13.
LACAN, Jacques. (1976) "Seminário, L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre" (18 de novembro de 1976) , Ornicar?, n. 12/13, Paris, 1977.
NGUYEN, Albert. "Le style de l'Autre à l'acte: de l'x au nom", Le style, 6-4-2-, Bulletin de l'ACF- Toulouse - Midi-Pyrénées, n. 7, 1998.
QUINET, Antonio. (1998) "Pacto, que pacto?", in A cisão de 1998 da Escola brasileira de Psicanálise, de Maria Anita Carneiro Ribeiro, Rio de Janeiro, Marca d'Agua Editora (Palea), 1998, pp. 123-133.
SAURET, Marie-Jean. (1996) "L'interpretation après la passe : entre logique et poesie", Seminaire d'A.E., Toulouse, ACF-TMP 1997.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Sintoma

A etimologia da palavra (Sintoma) vem do grego. 'Sin' = junção e 'Tomo' = pedaços. Ou seja, a palavra sintoma tem a ver com juntar as peças de várias sinalizações orgânicas ou psíquicas, mediante uma doença; assim como num quebra-cabeças.

Na literatura médica, sintoma é qualquer alteração da percepção normal que uma pessoa tem de seu próprio corpo, do seu metabolismo, de suas sensações, podendo ou não consistir-se em um indício de doença. Sintomas são frequentemente confundidos com sinais, que são as alterações percebidas ou medidas por outra pessoa, geralmente um profissional de saúde. A diferença entre sintoma e sinal é que o sinal é aquilo que pode ser percebido por outra pessoa sem o relato ou comunicação do paciente e o sintoma é a queixa relatada pelo paciente mas que só ele consegue perceber.( fonte Wikipedia)


É necessário conhecer e reconhecer os sintomas. Sintoma, marca estrutural e estruturante do sujeito barrado.Sintoma que faz sofrer e que satisfaz.É para dar conta do sintoma que faz sofrer mas que também satisfaz, que o paciente busca e trabalha em análise. Tratamos o sintoma sem o liquidarmos pois há algo dele que permanece e operamos sobre o gozo propiciando a travessia do fantasma e a produção da escrita do sinthoma.
O sintoma instaura a função do analista. Num processo de análise encontramos o equíbrio para convivermos com nossos sintomas... Carol Gouvêa


" Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."
Clarice Lispector

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ajuda psicológica para lidar com o fim de um relacionamento.

No dia 18/06/2013 recebi um convite por e-mail para contribuir na construção deste artigo para uma revista.

Pensei sobre o título e meus escritos perpassam sempre pelo olhar subjetivo e psicanalítico.

Deixo aqui um rascunho da minha construção....

Ajuda psicológica para lidar com o fim de um relacionamento.

Caroline Gouvêa S. Wallner



          Todos desejamos, em última instância ser amados. Ser capturado pelo amor é a maior alegria que um ser humano pode sentir na vida, mas assumir um relacionamento e responsabilizar-se pela relação é algo muito doloroso, embora preciso.

         Talvéz na saída de uma relação, e consequentemente passar por um fim de relacionamento saudável inclua saber o que é seu e o que é do outro, deixando sempre um espaço, a fim de que o desejo que se instaura nesta hiancia entre dois torne-se sempre a motivação para um novo encontro. Mas não ao encontro do outro como aquilo que lhe falta ou complete. O sujeito apaixonado, me parece, almejar fazer de dois –um. O ser apaixonado elege o seu amado a condição de único, de onipresente em seus pensamentos. Tenta-se apropriar de algo que é inapropriável. O que nos levaria a distinguir a paixão do amor.
         Carlos Eduardo Leal, poeta e psicanalista, aborda a diferença entre paixão e amor: "A paixão é a loucura do amor. O amor-apaixonado quer viver com o outro. A paixão faz com que o outro viva para você (já que você se oferece como altar dos sacrifícios para este outro). O aprionamento é inevitável e o sofrimento também. Ser servil nem sempre é ser submisso, porque muitos se utilizam da tirania da vítima."
         A palavra relacionar” vem do Latim RELATIO, ”restauração, ato de trazer de volta”, de RELATUS, usado como particípio passado de REFFERRE,  formado por RE-, “de novo”, mais  FERRE, “portar, levar”.O sentido de “estabelecer uma ligação entre pessoas” é do século XVIII. E no momento em que perde-se esse sentido de portar, levar ou ligar as pessoas, algo também se perde e passamos a vivenciar um luto.  Um luto a partir de um investimento de energia  no objeto amado, no outro. O entendimento que a Psicanálise faz do luto não diz respeito apenas à morte concreta de um objeto amado, mas também ao rompimento de um relacionamento. Diante disso nossa mente se comporta de forma equivalente quando há uma morte de alguém querido: um desânimo profundo e penoso, perda de interesse no mundo externo e na capacidade de amar, diminuição da autoestima. O enlutado vai se afastando da maneira com que vivia seu cotidiano.
         J.D.Nasio,psiquiatra e psicanalista, se pergunta: “Quem é o outro, meu parceiro, a pessoa amada? Quando Freud escreve que o sujeito faz o luto do objeto perdido, ele não diz ‘da pessoa amada e perdida’ e sim do ‘objeto perdido’. Por que? Quem era a pessoa amada que se perdeu? Que lugar ocupa para nós a ‘pessoa’ amada? É no objeto de investimento o qual fiz referência anteriormente.
         O sofrimento nos leva a maturidade, mas é necessário falar sobre aquilo que foi perdido, a fim de elaborar o luto, desinvestir a energia da representação do amado e retirar o excesso de afeto que existia nele. Sigmund Freud dizia que nunca nos expomos tanto à infelicidade do que quando amamos, e que nos sentimos ainda mais desvalidos quando perdemos o objeto amado ou seu amor. O sofrimento, ou o processo de luto não pode durar para sempre, Há uma distinção entre o luto e do que denominamos luto patológico – melancolia. A grande diferença entre um e outro, para Freud, é que enquanto no luto o mundo se torna vazio e inexpressivo, nos casos melancólicos, a pessoa que perdeu o objeto amado é que se sente vazia e inexpressiva. É necessário estar atento pois a melancolia não passa sozinho.
       Acredito que sair de um relacionamento amoroso de forma saudável, a análise seja aconselhável para quem está vivenciando um luto e imprescindível para os casos melancólicos. Para a Psicanálise encontrar  a si mesmo ajuda a superar o fim de um relacionamento. Buscar em si o que outrora se buscava no outro e saber que o sofrimento é algo inerente à condição humana, portanto  não podemos viver no lugar do outro algo que lhe é próprio, que não podemos apartar o sofrimento de quem quer que seja , no máximo, acompanhá-lo.

         "Amar verdadeiramente alguém, é acreditar que ao amá-lo se alcançará uma verdade sobre si mesmo. Ama-se aquele que conserva a resposta ou uma resposta à nossa questão 'Quem sou eu?'".  Jaques Alain Miller

quinta-feira, 29 de novembro de 2012


 Repassando: lançamento do livro e noite de autógrafos, dia 10/12/12 em São Paulo:




"No limiar do silêncio e da letra
traços da autoria em Clarice Lispector

Maria Lucia Homem
“Mas já que se há de escrever,
que ao menos não se esmaguem
com palavras as entrelinhas.”
Clarice Lispector

"Em No limiar do silêncio e da letra: traços da autoria em Clarice Lispector, Maria Lucia Homem lança luz sobre a construção e crise da subjetividade contemporânea ao mediar o encontro inusitado entre a maior escritora brasileira, Clarice Lispector, e um dos pilares da psicanálise moderna, Jacques Lacan.

Como a psicanálise pode contribuir para a renovação da leitura crítica das obras de Clarice Lispector? Nas primeiras décadas do século XXI, o que ainda temos a escutar de Clarice? A psicanalista, pesquisadora da USP e professora da FAAP responde à questão de forma original ao abordar, em seu primeiro livro, o embate entre palavra, silêncio e autoria, verdadeiro tripé esfíngico na escrita clariceana.


O lançamento do livro pela Boitempo Editorial, em coedição com a Edusp, coincide com os 35 anos de morte de Clarice Lispector e cumpre o difícil desafio de dizer algo novo sobre sua produção literária que, com as vanguardas de seu tempo, questionou tanto os cânones quanto os estilos e formatos de criação literária. “Maria Lucia enfrenta a tensão entre a psicanálise, que busca escutar o inaudível, e a literatura, que tenta expressar o irrepresentável, para explorar uma busca da ‘realidade muda’. Ela teve o mérito de utilizar seus instrumentos com tal pertinência e profundidade que faces ainda obscuras da obra de Clarice puderam vir à luz”, afirma Yudith Rosenbaum no prefácio do livro.

Na virada para o século XX, com a formalização do inconsciente – de uma metodologia clínica e de um aparato teórico de acesso a ele – surge um fato incontornável: o sujeito dividido, pulsional, descentrado, raiz de uma nova forma de escrita. Nas palavras de Freud: "o Eu não é mais senhor em sua morada". A partir desse momento, há um constante diálogo entre a literatura e a teoria psicanalítica.

Além de ter como base a psicanálise, com clara inspiração em Jacques Lacan, que com Sigmund Freud compõe referência central do livro, a abordagem de Maria Lucia é construída no campo da teoria literária e da filosofia estética, atualizando os debates promovidos por Nietzsche, Benjamin, Adorno, Barthes, Foucault, Auerbach, Anatol Rosenfeld e Cortázar. Esse conjunto de referenciais teóricos desdobra-se em um estudo amplo sobre a noção de sujeito na obra de Clarice. O livro é calcado na análise dos três últimos romances da autora – Água viva, A hora da estrela e Um sopro de vida, todos escritos nos anos 1970 –, nos quais se revela de forma mais clara uma inquietação com os limites da escrita, a relação entre a língua e o mundo, a palavra e a impossibilidade de dizer. São obras em que o sujeito criador (o autor) se esconde na multiplicidade de vozes narrativas e na ausência de um fio condutor.

Inspirada na proposição lacaniana de que estamos fadados justamente a tentar falar sobre o que não se pode dizer, a autora escolheu abordar o tema do silêncio (o que se pode, afinal, escrever?) e da autoria (quem, de fato, escreve atrás do que escrevo?). Nos três romances, o impronunciável                   manifesta-se como peça fundamental na busca de "algo além do texto": o silêncio é a origem, causa da narrativa e, ao mesmo tempo, polo para o qual se dirige a palavra. É a falta impulsionando a escrita que procuraria, então, significar a inapreensível totalidade do vivido.

Já a questão da autoria, como segundo eixo determinante para o trabalho, é retomada em sua vertente problemática, desde os primórdios do romance dito moderno. O romance estruturalmente clássico – que buscava representar o universo subjetivo do herói individualizado – fica estremecido em suas bases sólidas e já estabelecidas. Abre espaço para uma maneira de compor em que personagem, narrador e autor se interceptam continuamente e na qual o silêncio aparece como ponto de fuga da narração, arrastando o próprio movimento da escritura. O pacto ficcional se altera, e o jogo entre silêncio e palavra se revela."

Sobre o livro

“No limiar do silêncio e da letra. Traços da autoria. O título já oferece a pista: o conflito constante na obra clariceana vivido por um autor entre o silêncio que circunda toda linguagem e a palavra que busca se enunciar. Como se estivéssemos cercados de água silenciosa por todos os lados e tivéssemos a ilha palavra a nos ancorar e propiciar algum fôlego para prosseguir a viagem. Vez ou outra, um continente, a ilusão de solidez contínua e definitiva, e, logo em seguida, a consciência de que ele também não passa de uma ilha. Ilha grande, mas também cercada por um mar de silêncio, inevitavelmente, a maior porção da superfície desse nosso mundo. E nessa dinâmica, a construção constante e infinita do lugar do autor, que se refaz a cada vez.”

Sobre a autora

Maria Lucia Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora nas áreas de Psicanálise, Cinema, Literatura e Comunicação da FAAP. Tem pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII/Collège International de Philosophie e doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Ficha técnica

Título: No limiar do silêncio e da letra
Subtítulo: traços da autoria em Clarice Lispector
Autora: Maria Lucia Homem
Prefácio: Yudith Rosenbaum
Orelha: Vladimir Safatle
Quarta capa: Joel Birman
Páginas: 200
ISBN: 978-85-7559-302-8
Preço: a definir
Editoras: Boitempo e Edusp

Via: Observatório da Clínica.

Link para acesso: https://www.facebook.com/events/522307077782601/

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Sobre o Amor, entrevista com Jacques-Alain Miller

Sobre o Amor, entrevista com Jacques-Alain Miller


Psychologies Magazine, outubro 2008, n° 278
Entrevista realizada por Hanna Waar

Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?

Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.

P.: Então, o que é amar verdadeiramente?

J-A Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão "Quem sou eu?".

P.: Por que alguns sabem amar e outros não?

J-A Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.
    
P.: "Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso...

J-A Miller: Acertou! "Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem". O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua "castração", como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.

P.: Amar seria mais difícil para os homens?

J-A Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a "degradação da vida amorosa" no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.

P.: E nas mulheres?

J-A Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem...

P.: Por que "cada vez mais"?

J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1). Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.

P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?

J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.

P.: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?

J-A Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!

   P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!

J-A Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.

P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?

J-A Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.

P.: E a fantasia masculina?       

J-A Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe (2), a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.

P.: Tem-se a impressão de que somos marionetes! 

J-A Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.

P.: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?

J-A Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3). Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.

  
P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas...

J-A Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os
amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.

Tradução de Maria do Carmo Dias Batista.